Resumo: O G1 é um site noticioso do Portal Globo.com, que é o 5º site mais acessado do Brasil. Devido à sua popularidade, os comentários do G1 já foram objeto de estudo em diversas pesquisas que analisaram esse espaço quanto a sua produção de sentidos. Diferente desses estudos, o objetivo deste trabalho é verificar quais materialidades digitais produzem impacto nos comentários do G1. O problema de pesquisa é o seguinte: quais são os impactos das materialidades digitais nos comentários do G1? Os resultados sugerem que essas materialidades digitais causam impacto somente quando são instauradas nas lógicas do sistema, de forma que os termos de uso podem ter suas regras ignoradas pelos leitores caso não sejam implementadas de forma impositiva.
Introdução
Este trabalho possui como objeto de estudo as materialidades digitais dos comentários do G1. O portal de notícias G1 [1] é um site pertencente a empresa Globo.com, subsidiária do conglomerado de mídia e comunicação Grupo Globo. As linhas de comentários do G1 são um espaço público onde os leitores que possuem uma Conta Globo verificada podem conversar e opinar sobre os assuntos das notícias.
O presente estudo se justifica pela importância do Portal Globo.com, que é o 5º site mais acessado no Brasil [2]. Devido à popularidade desse portal, os comentários do G1 já foram objeto de estudo em diversas pesquisas acerca dos sentidos que foram produzidos nesse espaço. Ao invés de analisar a produção de sentidos, a contribuição deste estudo está em investigar sobre a temática impacto das materialidades digitais nos comentários do G1.
Nesse sentido, esta pesquisa aborda o seguinte problema de pesquisa: quais são os impactos das materialidades digitais nos comentários do G1? Esta investigação parte da hipótese de que materialidades digitais, como infraestruturas, regras de negócio e termos de uso, fazem os leitores utilizarem a linha de comentários do G1 de forma a se alinhar com os interesses da plataforma, enquanto essas mesmas materialidades digitais também possuem o propósito de prevenir ações potencialmente danosas ou indesejadas por parte dos atores do sistema.
O objetivo deste estudo é verificar quais materialidades digitais produzem impacto nos comentários do G1. Para tanto, o método utilizado se alinha com a pesquisa hipotético-dedutiva, descritiva e de abordagem qualitativa e quantitativa. O corpus deste estudo foi constituído por 1 milhão de comentários do G1, que foram publicados entre 28 de março de 2020 e 11 de setembro de 2020.
Este trabalho se divide em três partes. Primeiro, as materialidades e plataformas digitais foram situadas conforme as ideias de Van Dijck, Poell e De Wall (2018). Já as materialidades dos comentários do G1 foram sumarizadas através da “tabela de materialidades digitais”. Por fim, o corpus de comentários do G1 foi analisado em perspectiva dessas materialidades identificadas.
Plataformas e materialidades digitais
O objetivo dessa seção é operacionalizar o conceito de materialidades digitais em perspectiva das plataformas digitais. Neste estudo, e também conforme a própria Globo, a linha de comentários do G1 é entendida como uma “plataforma de comentários”, que opera sob o ecossistema de plataformas da Globo.com.
De acordo com Poell, Nieborg e Van Dijck (2020, p. 3), plataformas são “infraestruturas digitais (re)programáveis que facilitam e moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados”.
As plataformas digitais podem ser sistemas codificados para resolver problemas específicos, vide AirBNB, iFood e Uber, que possuem modelos de negócio onde as empresas atuam como intermediárias, provisionando somente a parte logística e tecnológica da operação. Este tipo de plataforma é definida por Van Dijck, Poell e De Wall (2018) como plataformas setoriais, pois atuam em um nicho específico, seja no setor de publicidade, transporte, vendas, etc. Conforme os autores, essas plataformas funcionam como conectores que intermediam a ação dos complementadores, os atores do sistema.
Para além desse modelo, existem também as plataformas infraestruturais, que são como grandes “blocos de construção” dos quais as plataformas setoriais necessitam para provisionar serviços essenciais (VAN DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018). Por exemplo, a Uber utiliza o Google Maps como serviço de mapas, a Netflix está hospedada na infraestrutura da Amazon Web Services, o aplicativo do iFood está disponível para download na App Store e na Google Play, etc.
Não obstante, esse ecossistema de plataformas é muito maior do que uma questão tecnológica, pois afeta as sociedades, a economia e os governos, de tal forma que levaram Van Dijck, Poell e De Wall (2018) a defenderem uma ideia de “sociedade da plataforma”, que reflete justamente essa concepção de uma sociedade permeada pelas plataformas digitais. Nesse sentido, destacam-se também as questões de governança das plataformas, dos crípticos termos de contrato que as protegem, dos affordances que induzem as pessoas a realizarem algumas ações em detrimentos de outras e dos algoritmos enviesados que privilegiam os interesses dessas empresas.
Por seguinte, quanto a construção do conceito de materialidades da comunicação, conforme Gumbrecht (2010, p. 28), que situa o desenvolvimento desse termo no colóquio “Materialidades da Comunicação” de 1987, foi definido que “são todos os fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido”. O autor argumenta que as Humanidades estão saturadas de abordagens que objetivam acessar a dimensão do sentido, de forma que ressalta a importância de se desenvolver conceitos capazes de considerar também a dimensão da presença. Conforme esclarece Simone de Sá (2016), a ideia central de Gumbrecht (2010) é contestar a centralidade da “interpretação” nesses instrumentos metodológicos.
Em leitura similar, Bollmer (2019) defende que as materialidades devem ser equacionadas com as questões de sentido, de forma que esses elementos necessitem ser avaliados em consonância.
Bollmer (2019) postula que as materialidades digitais são ofuscadas pelas interfaces gráficas, pois geralmente utilizam metáforas abstratas para representar processos que na verdade são muito complexos. O autor afere que, por exemplo, para enviar um email, uma série de eventos é desencadeada, os quais necessitam de cabos de internet, dispositivos de rede, data centers e outras infraestruturas para que essa informação possa alcançar a tela de outro dispositivo. Pensar as materialidades digitais é justamente considerar essas questões, mesmo quando o objeto de estudo se encontra na dimensão do sentido.
Quanto a relação entre plataformas e materialidades digitais, Plantin e Punathambekar (2019) argumentam que empresas como Amazon, Facebook e Google, que iniciaram como plataformas focadas em áreas específicas, passaram a atuar em uma gama de setores, de forma que se tornaram infraestruturas essenciais até mesmo para os campos políticos e sociais. Segundo os autores, essas mesmas empresas realizam grandes investimentos em infraestrutura, de forma que passaram a atuar na área de provisionamento de acesso à internet e também melhoraram as tecnologias das telecomunicações (inclusive implementando cabos submarinos). Embora pareça, à primeira vista, uma contribuição genuína para o bem comum, conforme os autores alertam, o objetivo primário desses investimentos é criar recursos suficientemente poderosos e capazes de suprir suas próprias demandas computacionais.
Nesse sentido, em relação a essa questão do provisionamento de recursos, Lemos, Bitencourt e Santos (2020) tencionam quanto aos impactos materiais da circulação de sentidos nas plataformas digitais. Os autores investigaram a difusão de vídeos com notícias falsas sobre o vazamento de óleo no Brasil em 2019, e constataram que, para além do problema da desinformação, a circulação desse conteúdo consumia recursos energéticos (data centers, computadores, smartphones, infraestrutura de telecomunicação, etc.), de forma a ampliar ainda mais o impacto ecológico desse evento. Quanto a essa questão ambiental, de acordo com Costenaro e Duer (2012), o consumo médio de energia elétrica para cada 1 GB de dados da internet é referente a 5 kWh.
Por fim, de acordo com Bollmer (2019), destaca-se também que as materialidades não são apenas aquilo que é fisicamente tangível, de forma que processos, relações, cognição e linguagem possuem uma dimensão material. Conforme provocação do autor, é importante pensar no que os objetos de estudo podem fazer, além de pensar quanto ao que podem significar, de forma a tomar a performance também como uma materialidade.
Materialidades digitais dos comentários do G1
Essa seção do estudo descreve as materialidades digitais que podem impactar na linha de comentários do G1. As fontes utilizadas foram documentos públicos fornecidos pela Globo.com, como os termos de uso [3], política de privacidade [4] e central de ajuda [5].
Em alguns casos foram utilizadas fontes externas, como notícias e documentação técnica, que serviram para evidenciar questões que não foram devidamente esclarecidas nestas fontes principais. Além disso, a ferramenta de inspeção de rede do navegador foi utilizada para obter mais informações acerca da estrutura técnica da Globo.com.
Desta forma, a linha de comentários do G1 é definida nos termos de uso como uma “plataforma de comentários”. Esse sistema de comentários é utilizado em outros produtos da Globo.com, de forma a ser um recurso compartilhado e não apenas uma funcionalidade específica do G1. Desta forma, o portal Globo.com é um ecossistema de plataformas que compartilham recursos e possuem interdependência de funcionamento.
Existem, por exemplo, G1 e Globoplay, como plataformas setoriais; e Conta Globo e Comentários, como plataformas infraestruturais.
Qualquer pessoa pode visualizar os comentários do G1, mas é necessário possuir uma Conta Globo para interagir com os leitores e a plataforma (publicar e responder comentários, enviar like e realizar denúncias). A Conta Globo [6] é uma solução de SSO
(single sign-on) para gerenciar a autenticação e autorização dos usuários nas plataformas da Globo.com. Esse serviço possui o mesmo tipo de tecnologia utilizada pelas Big Techs, seguindo padrões de segurança como OAuth 2.0, OpenID Connect e JWT.
Além da Conta Globo, como requisito adicional para comentar, é necessário realizar a verificação SMS, que geralmente é utilizada para dificultar a criação de contas falsas, que podem ser utilizadas para enviar spam através da ação de bots e atores maliciosos. Destaca-se que em 2015 a Globo.com mudou seus termos de uso para os comentários [7], de forma a ser mais rigorosa em penalizar leitores que difundiam conteúdo de ódio, além de incorporar essa verificação SMS como requisito para interagir com os comentários. Diversos estudos evidenciam que as linhas de comentários do G1 podem ser cenário de manifestação da violência (CUNHA, 2013; MATOS; HÜBNER, 2017; SILVA, 2019; BIAR; PASCHOAL, 2020), de forma que os termos de uso e essas regras de negócio (Conta Globo e verificação SMS) sejam materialidades que atuam contra a difusão dessas ações.
Não obstante, como estratégia para contornar essa verificação SMS, alguns atores maliciosos passaram a utilizar sites de “SMS online”, os quais possuem uma lista de números de telefone que podem receber mensagens SMS anonimamente. Existem diversos sites que disponibilizam gratuitamente esse recurso, sem qualquer tipo de verificação de identidade ou restrição de uso. Como evidência, existe o site receivesmsonline.com, o qual inclusive possui diversas mensagens de verificação SMS da Globo.com [8], demonstrando que de fato existem pessoas interessadas em fraudar o sistema de autorização da plataforma.
Por outro lado, os termos de uso deixam claro que a responsabilidade pelo conteúdo dos comentários é de seus respectivos autores, enquanto a Globo.com também afirma que não possui a obrigação de moderar os comentários, como tampouco verifica as identidades dos usuários. Esse aspecto vai de encontro aos postulados de Van Dijck,
Poell e De Wall (2018), onde os autores situam que as plataformas digitais se colocam em posição de neutralidade, qualificando-se apenas como meros mediadores que não possuem responsabilidade pelas ações dos seus usuários. No entanto, materialidades digitais como os termos de uso e a lógica dos algoritmos atuam claramente em favor da manutenção dos interesses da plataforma, conforme pode ser observado nesse caso.
Por seguinte, a linha de comentários do G1 utiliza o sistema livre e de código aberto Coral Project [9], desenvolvido pela companhia Vox Media. Esse mesmo sistema de comentários é utilizado em outros sites noticiosos que possuem grande visibilidade, como o The Wall Street Journal, Los Angeles Times e The Intercept. Foi verificado que esse sistema de comentários é uma atualização tecnológica da Globo.com, implementado a partir de 2019 (aproximadamente). Anterior a esse ano, o G1 utilizava uma tecnologia que, aparentemente, foi desenvolvida pela própria equipe de pesquisa e desenvolvimento de software da Globo.
Não há como saber o que motivou essa mudança, mas destaca-se que o Coral Project possui diversas funcionalidades importantíssimas para um sistema de comentários, como painel administrativo, gestão da privacidade, bloqueio de conteúdo impróprio, sistema de moderação, integração com reCAPTCHA, entre outros. Além disso, o Coral Project é mantido por um time de especialistas nessa área, com a participação ativa da comunidade open-source, de que forma que utilizá-lo pode reduzir custos de desenvolvimento e melhorar a qualidade da plataforma.
No entanto, ficam evidentes os esforços em manter os comentários sob controle direto da Globo.com, pois existem plataformas de comentários como a Disqus e o plugin de comentários do Facebook, que reduzem drasticamente os custos de desenvolvimento e operacionalização de uma linha de comentários, em troca de perder transparência e controle sobre os fluxos de dados. Dito isso, essas escolhas tecnologias sugerem que a linha de comentários do G1 é um produto importante para a Globo.com, de forma que fez sentido para os interesses da empresa mantê-lo sob sua administração, mesmo que tal escolha implicasse em maiores custos de tecnologia e recursos humanos.
Sugere-se também que as garantias de controle sobre os fluxos de dados e armazenamento dos comentários seja uma decisão estratégica, tomando como referência a noção de datificação e de dados como commodities postulados por Van Dijck, Poell e De Wall (2018). Os termos de uso deixam claro que os comentários dos leitores são de responsabilidade dos seus respectivos autores, mas passa a ser propriedade da Globo.com após publicação, de forma que podem ser utilizados pela empresa e seus parceiros para “melhorar a plataforma”, conforme esclarece a política de privacidade.
Em 2021, a Globo anunciou [10] que irá migrar 100% dos seus centros de dados à nuvem da Google (Alphabet), através de parceria estratégica de 7 anos com foco em inovação. Ainda segundo essa notícia, a Globo deve se beneficiar da tecnologia em inteligência artificial e da infraestrutura global da Google, que permite escalabilidade sob demanda e redução de custos operacionais. Dentre outros fatores que motivaram essa mudança, estão o cenário de trabalho a distância ocasionado pela pandemia e os picos de acesso aos serviços de streaming durante a transmissão do Big Brother Brasil.
Por fim, a Globo destaca que a tecnologia de aprendizado de máquina da Google será utilizada também para proporcionar serviços personalizados aos seus 100 milhões de usuários, de forma a aprimorar os sistemas de recomendação e conteúdo direcionado de suas plataformas.
Por fim, a Tabela 1 sumariza as materialidades digitais que podem impactar na linha de comentários do G1. Estas informações foram obtidas através da aproximação empírica e da interpretação dos termos de uso, política de privacidade e respostas da central de ajuda. Também foram atribuídos códigos aos itens da tabela, de forma a facilitar as referências a este conteúdo.
Tabela 1 – Materialidades digitais dos comentários do G1

Fonte: Elaborada pela pesquisadora.
Análise do corpus de comentários
Partindo da sumarização ilustrada na Tabela 1, que descreve as materialidades digitais que podem impactar nos comentários do G1, nesta seção do estudo, um corpus de comentários foi analisado em perspectiva destes achados. O objetivo deste estudo é verificar quais materialidades digitais produzem impacto nos comentários do G1. Desta forma, o método utilizado se apropria dos instrumentos da linguística de corpus (SARDINHA, 2004) e da análise de conteúdo (BARDIN, 2011) para realizar esta investigação.
Em concordância com Bollmer (2019), que ressalta acerca da importância de investigar sobre quais ações o objeto de pesquisa é capaz de fazer desencadear, foram conduzidas analises que objetivaram falsear as hipóteses da Tabela 1. Ao invés de investigar quanto a produção de sentidos, essas análises foram planejadas para verificar os impactos das materialidades digitais nos comentários do G1. Para tanto, um corpus de comentários do G1, que já havia sido coletado em trabalho anterior (VELHO; MONTARDO, 2020), foi o “campo” a ser investigado.
Conforme foi apresentado em Velho e Montardo (2020), um programa do tipo web scraper foi desenvolvido para coletar os comentários do G1. Esse programa foi desenvolvido após investigação realizada através da ferramenta de diagnóstico de rede do navegador, que analisou o funcionamento da linha de comentários do G1. Após entender um pouco mais sobre a tecnologia de comentários do G1, no caso, o Coral Project, foi possível codificar um algoritmo capaz de coletar esse conteúdo sistematicamente.
Destaca-se que as questões éticas e os termos de uso da Globo.com foram levados em consideração no desenvolvimento deste programa. Para evitar possível sobrecarga dos servidores, as requisições do web scraper foram programas para ocorrer com intervalo de 0,3 rps (aproximadamente um acesso a cada três segundos). Além disso, no cabeçalho dessas requisições foi adicionado o email para contato e a informação de que os acessos estavam acontecendo em função de uma pesquisa acadêmica. Também não foram tomadas medidas para ofuscar o endereço IP, bem como o programa também não resistiu a qualquer tipo de restrição que pudesse ser aplicada para conter os acessos.
Após a realização desta coleta de dados, foram obtidos 1.059.672 comentários distribuídos entre 137.173 notícias, as quais ocorreram entre 28 de março de 2020 e 11 de setembro de 2020. Para cada um desses comentários, foram coletados conteúdo textual, data de criação, quantidade de likes, respostas recebidas, ID anônimo do leitor que publicou e data de criação da conta do leitor que publicou. As respostas possuem a mesma estrutura de um comentário.
Por seguinte, após a coleta de dados, em concordância com Sardinha (2004), o conteúdo textual dos comentários passou pelas etapas de limpeza e pré-processamento, as quais foram realizadas através das seguintes rotinas de mapeamento e filtragem: (1) transformou todos os caracteres em minúsculos, (2) removeu acentos, pontuação, quebras de linha, espaços duplicados e stopwords, (3) substituiu expressões de linguagem de internet e abreviações através de um dicionário de palavras e, por fim, (4) o texto foi tokenizado e (5) armazenado em um banco de dados SQLite.
Quanto às análises, foram utilizados instrumentos da análise de conteúdo e da linguística de corpus. Essa decisão foi motivada pelo fato de que o corpus deste estudo não é somente conteúdo textual, de forma que a linguística de corpus não seria o mais adequado para este estudo. Por outro lado, a análise de conteúdo poderia provisionar instrumentos neutros nesse sentido.
Outra opção seria utilizar a análise multidimensional de Sardinha (2004), que a descreve como um método capaz de cruzar aspectos da linguagem com outras dimensões, mas fica evidente que esse procedimento possui enfoque em resultados de natureza linguística.
Desta forma, para cada uma das hipóteses da Tabela 1, foram conduzidas análises que verificaram o conteúdo dos comentários em busca de impactos ocasionados pelas materialidades digitais. Estas análises utilizaram instrumentos básicos da estatística descritiva, como média e frequência absoluta dos vocábulos (RAISINGER, 2014). Mas para verificar relações de presença e frequência do conteúdo, foi utilizada a etapa de enumeração da análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Destaca-se que estes procedimentos foram automatizados através de algoritmos desenvolvidos para este estudo.
Partindo destas prerrogativas, a Tabela 2 sumariza os resultados das análises em perspectiva das hipóteses da Tabela 1.
Tabela 2 – Resultados da análise

Fonte: Elaborada pela pesquisadora
Os resultados demonstram que os leitores podem subverter as regras da plataforma, geralmente explorando as lacunas deixadas pelas regras de negócio, de forma que os termos de uso parecem ser efetivos somente quando a plataforma impõe suas regras na própria lógica do sistema. Portanto, sugere-se que contas falsas não foram evidenciadas devido a lógica rigorosa de verificação SMS, pois se fossem apenas os termos de uso, essa regra seria ignorada.
No entanto, mesmo quando os termos de uso são efetivados como regras de negócio, os leitores podem encontrar formas de contorná-las ao invés de se adequarem, algo que fica evidente vide a difusão de spam e o envio de comentários com discurso de ódio que foram identificados. Independente da verificação SMS, as pessoas continuam enviando spam, mas ao invés de realizar essa ação de forma distribuída através de diversas contas falsas, o conteúdo é enviado pouco a pouco, de forma possivelmente manual, utilizando uma única conta. Da mesma forma, independente das restrições, os leitores permanecem realizando tentativas de difundir o discurso de ódio, só que pelas sombras, através de estratégias para evitar a detecção e punição da plataforma. Também fica evidente que esses atores maliciosos adquirem conhecimento sobre o funcionamento do sistema para realizar essas ações.
Não obstante, foi verificado que os leitores podem desvirtuar o propósito dos recursos do sistema, de forma a utilizá-los para propósitos diferentes dos quais foram originalmente projetados para realizar. O recurso de denúncias, por exemplo, foi utilizado por alguns leitores como uma forma de punir pessoas através de outros critérios que não as leis, cidadania, ou mesmo os termos de uso da Globo.com, o que difere do propósito de ser um recurso para auxiliar na moderação da plataforma.
Por seguinte, destaca-se que as estratégias de gestão dos comentários são efetivas no sentido de proteger os interesses da Globo.com, mas não possuem o propósito de melhorar a experiência dos usuários. Embora a plataforma seja, aparentemente, capaz de evitar a ocorrência de crimes nos comentários (o que é extremamente importante e não deve ser menosprezado), não foram verificadas ações que possuem o objetivo de fornecer uma experiência de interação mais agradável, pois o teor das linhas de comentários permanece negativo, embora o discurso de ódio esteja ofuscado.
Por fim, quanto a hipótese deste estudo, sugere-se a seguinte retificação: as materialidades digitais, como infraestruturas, regras de negócio e termos de uso, se alinham aos interesses da plataforma e possuem o propósito de prevenir ações potencialmente danosas ou indesejadas por parte dos atores do sistema, mas essas mesmas materialidades digitais produzem impacto somente se estiverem devidamente implementadas como lógicas do sistema.
Considerações finais
Este foi um estudo acerca da temática impacto das materialidades digitais nos comentários do G1. Através do método foi possível verificar que as materialidades digitais dos comentários do G1 causam impacto somente quando são instauradas nas lógicas do sistema, de forma que os termos de uso podem ter suas regras ignoradas pelos leitores caso não sejam implementadas de forma impositiva.
Para próximos estudos, outras materialidades digitais dos comentários do G1 poderiam ser analisadas. Neste trabalho houve enfoque nos impactos ocasionados pelos termos de uso e regras de negócio da plataforma de comentários, de forma que as infraestruturas físicas e lógicas, questões de performance, linguagem, cognição e affordances ainda poderiam ser investigadas.
Referências
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[1] Disponível em: g1.globo.com.
[2] Conforme a Alexa Internet, empresa da Amazon. Disponível em: alexa.com.
[3] Termos de uso da “plataforma de comentários”. Disponível em: login.globo.com.
[4] Política de privacidade da Globo.com. Disponível em: privacidade.globo.com.
[5] Central de ajuda do produto “Comentários”, que esclarece algumas das regras de negócio da plataforma. Disponível em: centraldeajuda.globo.com.
[6] Página principal da Conta Globo. Disponível em: conta.globo.com.
[7] Notícia do G1 sobre as novas regras para comentários de leitores, com destaque para a verificação SMS e os termos de uso. Disponível em: g1.globo.com.
[8] Captura de tela da página receivesmsonline.com, com as mensagens enviadas pelo sistema da Globo.com já destacadas. Disponível em: lensdump.com.
[9] Página principal do Coral Project. Disponível em: coralproject.net.
[10] Notícia sobre a parceria Globo-Google e migração da infraestrutura da Globo para o Google Cloud. Disponível em: redeglobo.globo.com.